Uma lista de comidas e bebidas, acompanhadas de suas respectivas ilustrações, feita em papel com lápis carvão, intriga os estudiosos da gastronomia que visitam a Casa Buonarroti, misto de museu e monumento dedicado a Michelangelo Buonarroti (1475-1564), situada em Florença, na Itália. O escultor da Pietà, pintor dos afrescos da Capela Sistina e arquiteto da cúpula da basílica de São Pedro, todas essas obras em Roma, pode ter sido o autor do mais antigo menu existente. Não se sabe com que objetivo ele o fez, por que o ilustrou e em que ano isso aconteceu. Já se supôs tratar-se de um elenco de pratos levado por um ajudante analfabeto à taverna para buscar a comida do mestre. Hoje, acredita-se que Michelangelo o enviou à sua cozinheira iletrada, indicando os pratos e bebidas que desejava saborear no dia.
Desse modo, teria produzido o primeiro menu conhecido do mundo. Curiosamente, as enciclopédias de gastronomia o ignoram. A palavra menu é francesa. Compreende os pratos que vão ou podem ser servidos à mesa. Se pertencer a um restaurante, o preço deve aparecer junto ao nome dos pratos. Além disso, eles precisam estar na ordem de serviço. Muitos restaurantes populares, que recebem turistas estrangeiros, ainda incluem a foto do prato. É para facilitar a compreensão da clientela. Nesse sentido, imitam Michelangelo…
Brincadeiras à parte, as enciclopédias de gastronomia dizem que a estreia oficial do menu em papel ocorreu na segunda metade do século 18, em banquetes da corte de Luís XV (1710-74). Até então, imperava a surpresa. Os convidados só descobriam o que comeriam quando os pratos eram oferecidos a eles. O museu do Palácio de Versalhes, residência oficial do rei, conserva o cardápio elaborado pelo artista Brain de Sainte-Marie para um banquete oferecido a Luís XV em 1751. Entretanto, a primazia é contestada pelos alemães. Dizem haver lançado o menu em 1521, no banquete de abertura da Dieta de Worms. Mas não guardaram a prova.
O de Michelangelo mede 21 cm por 14,5 cm e separa os pratos em três grupos. Permite-nos, sobretudo, imaginar as preferências gastronômicas do artista. Pelo volume, ele teve companhia à mesa. Apesar das grafias dialetais, é quase todo compreensível. No desjejum, havia dois pães e arenque defumado, salgado ou conservado em azeite, talvez com cebola, alho e azeite. Para beber, un boccale (jarra de cerâmica) de vinho. Ao meio-dia, Michelangelo comeu salada, aparentemente à base de couve preta, azeitonas, ovo cozido e pedaços de queijo. A seguir, um pratinho de espinafre, anchovas e tortelli, a massa redonda ou em forma de meia-lua, provavelmente recheada com carne de javali. Depois, quatro pães e bruscino, um antigo queijo fresco e mole toscano à base de leite de ovelha e cabra. Já a última refeição reuniu seis pães, dois pratos de sopa de erva-doce, um arenque e outra jarra de bom vinho.
Apesar de receber gordas pensões e viver em ambiente requintado, Michelangelo se revelou uma pessoa de gosto simples. Aliás, era pessoa singela, porém de índole impulsiva. Na juventude, ridicularizou uma escultura do colega Pietro Torrigiano ou Torrigiani (1472-1528) e recebeu deste um soco que lhe desfigurou o nariz. “A pequena deformação lhe parecerá daí por diante um estigma (…), uma mutilação ainda mais dolorosa para quem, como ele, era um sofisticado esteta que considerava a beleza do corpo uma legítima encarnação divina na forma passageira do ser humano”, diz o autor do fascículo 17, sobre ele, da Coleção Gênios da Pintura (Abril Cultural, 1967). Michelangelo expressou essa obsessão pela arte em todas as obras que nos legou, inclusive nos pequenos desenhos do seu menu.
Fonte: Paladar/Estadão
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